A Seminova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) surgiu como uma promessa de modernização, eficiência e transparência para as compras públicas no Brasil. No entanto, passados os primeiros anos de sua implementação, um fantasma familiar assombra seu potencial transformador: a pesada mão da administração pública e uma burocracia que, em vez de facilitadora, se revela um emaranhado de obstáculos. A crítica não é à toa. O que deveria ser um caminho para melhores contratações e uso mais inteligente do dinheiro público corre o risco de se tornar mais um capítulo na longa história de boas intenções legislativas sufocadas pela inércia e complexidade do próprio Estado.
O cerne do problema reside, ironicamente, naqueles que deveriam ser os guardiões da nova lei: os órgãos públicos. A fase de planejamento, exaltada como pilar da NLLC, frequentemente tropeça em falhas primárias. Estudos Técnicos Preliminares (ETP) deficientes ou simplesmente ausentes são uma constante, minando a base de qualquer licitação bem-sucedida. Descrições imprecisas do objeto a ser contratado e pesquisas de preços inadequadas transformam o processo em um jogo de adivinhação, com potencial para o desperdício de recursos ou a inviabilização de propostas sérias. Essa negligência inicial não é um mero descuido formal; é a semente de futuros aditivos contratuais problemáticos, disputas judiciais e, no fim das contas, serviços e obras que não atendem à população.
A própria estrutura da lei, com sua miríade de regulamentos necessários – cerca de 45 menções à palavra “regulamento” – impõe um fardo administrativo considerável. Para municípios menores, com equipes enxutas e recursos limitados, essa complexidade se traduz em uma barreira quase intransponível. A consequência? Uma baixa adesão à nova lei em muitas localidades ou a busca por atalhos arriscados, como o uso de plataformas privadas de licitação que, por vezes, operam à margem de um controle efetivo, podendo restringir a competitividade e a transparência que a NLLC tanto preza.
E o que dizer do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP)? A grande vitrine da transparência, concebida para centralizar e dar publicidade a todos os atos licitatórios do país, tornou-se um retrato da disfunção. Relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU) são alarmantes: um índice de mais de 86% de registros com inconsistências ou falhas, ausência de dados essenciais, valores nulos e resultados não publicados. A Transparência Brasil complementa o diagnóstico, apontando a incompletude do esquema de dados e problemas graves na sua inserção. O PNCP, que deveria ser o farol da nova era, está com as luzes seriamente comprometidas pela ineficiência administrativa em alimentá-lo corretamente.
Essa cultura de “negacionismo de mercado”, onde as dinâmicas e realidades do setor privado são desconsideradas em prol de um formalismo rígido, também emperra o avanço. Exigências descabidas e estimativas de preços desconectadas da realidade sufocam a inovação e afastam bons fornecedores. A máquina pública, em muitos casos, parece mais preocupada em seguir ritos do que em alcançar resultados.
A burocracia excessiva não se manifesta apenas nos entraves operacionais, mas também na crescente judicialização dos processos. A complexidade da lei, somada aos erros da administração, transforma o Judiciário em uma arena para disputas que poderiam ser evitadas com planejamento adequado e gestão competente. A prioridade de tramitação para processos licitatórios, uma inovação bem-intencionada, esbarra na morosidade do próprio sistema judicial, muitas vezes tornando as decisões tardias e ineficazes.
Mesmo em áreas onde a lei buscou inovar para trazer eficiência, como nos regimes de contratação integrada e semi-integrada, a administração pública falha. Anteprojetos de engenharia de baixa qualidade transferem ônus indevidos aos contratados, gerando pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro e atrasos. A matriz de riscos, ferramenta crucial para dar previsibilidade, muitas vezes é elaborada de forma superficial ou simplesmente ignorada. E os aditivos contratuais, velho fantasma das licitações, persistem, agora sob novas regras que também geram controvérsias, como a manutenção do desconto original, que pode levar a situações de inexequibilidade para serviços novos.
A Nova Lei de Licitações, em sua essência, é um instrumento com potencial para revolucionar as compras públicas. Contudo, seu sucesso depende de uma mudança fundamental na cultura da administração pública. É preciso superar a mentalidade cartorial, o apego a formalismos desnecessários e a resistência à inovação. A capacitação dos agentes públicos é vital , mas não suficiente se não vier acompanhada de um compromisso genuíno com a eficiência, a transparência e, acima de tudo, com o interesse público.
Enquanto a administração pública continuar a tropeçar em seus próprios processos e a burocracia for um fim em si mesma, a Nova Lei de Licitações corre o sério risco de se juntar a tantas outras boas ideias legislativas que, na prática, foram engolidas pelo labirinto de um Estado que parece, por vezes, ser seu maior adversário. A modernização não virá apenas por decreto; ela exige uma transformação profunda na forma como o setor público encara seu papel e suas responsabilidades.